O dia em que Dorival encarou a guarda (Parte 1)


O dia em Dorival encarou a guarda (Parte 2)


Falsa democracia


A invenção da infância (Parte 1)


A invenção da infância (Parte 2)


A invenção da infância (Parte 3)


Ilha das Flores


Cidadania e direitos civis

Os direitos civis e as revoluções do século 18
Renato Cancian*

A tomada da Bastilha marca o início da Revolução Francesa
A cidadania moderna refere-se ao conjunto de direitos e deveres dos cidadãos que pertencem a uma nação, ou seja, o povo de um país. O núcleo dessa cidadania compõe-se basicamente de três elementos: o civil, o político e o social.

O aparecimento e a extensão dos direitos de cidadania ocorreram de forma lenta e gradual, variando bastante conforme a região.

Os direitos civis agrupam as prerrogativas de liberdade individual, liberdade de palavra, pensamento e fé, liberdade de ir e vir, o direito à propriedade, o direito de contrair contratos válidos e o direito à justiça. Os tribunais são as instituições públicas por excelência para salvaguarda dos direitos civis.

Iguais perante a lei
Antes da constituição da cidadania moderna, os direitos e deveres entre os homens eram definidos por privilégios sociais (posses, rendas, títulos de nobreza).

O surgimento dos direitos civis assinalou uma mudança substancial nas relações dos homens em sociedade. Foram rompidos os laços de dominação baseados nas relações comunitárias tradicionais, caracteristicos do período medieval e do sistema feudal.

Os direitos civis impuseram um nivelamento jurídico entre os cidadãos, que passaram a ser considerados iguais perante a lei. As distinções de origem e classe social continuam a existir, mas não devem interferir na igualdade jurídica dos cidadãos. Esse é o princípio básico de tais direitos.

O contrato social
O surgimento dos direitos civis está vinculado às revoluções burguesas na Europa do século 18. Elas tiraram a força das monarquias absolutistas e romperam com a sociedade hierarquizada do período pré-moderno. No absolutismo monárquico, a autoridade política (o rei) detinha o poder com base em privilégios sociais (nobreza hereditária).

Os filósofos do liberalismo político foram os autores das doutrinas contratualistas. Também denominadas “contrato social”, elas fundamentaram no plano ideológico a nascente igualdade formal nas relações entre os cidadãos. Os mais influentes filósofos contratualistas foram o inglês John Locke e o francês Jean-Jacques Rousseau.

No Brasil, o primeiro avanço registrado na área dos direitos civis foi a abolição da escravidão (1888). A primeira Constituição republicana (1891) assegurou a igualdade legal entre os cidadãos brasileiros. Garantiu as liberdades de crença, de associação e reunião, além do habeas corpus, para remediar qualquer violência ou coação por ilegalidade ou abuso de poder.

*Renato Cancian é cientista social, mestre em sociologia-política e doutorando em ciências sociais. É autor do livro “Comissão Justiça e Paz de São Paulo: Gênese e Atuação Política – 1972-1985”.

Disponível aqui. Acesso em 23 fev. 2010.


Cidadania e direitos políticos e sociais

Origem e importância
Renato Cancian*

Nos países ocidentais dos continentes europeu e americano, a cidadania moderna se constituiu por etapas: depois dos direitos civis, no século 18, vieram os direitos políticos, no século 19. Os direitos sociais são conquistas do século 20, assim como a quarta geração de direitos de cidadania, nascida no fim desse período.

O direitos de eleger e ser eleito
São os direitos políticos, de voto e de acesso ao cargo político. As instituições públicas relacionadas aos direitos políticos são os órgãos legislativos representativos e executivos.

Inicialmente, a atividade política era uma função de poucos, restrita à participação das elites dominantes. O surgimento dos direitos políticos foi obra dos movimentos populares dos trabalhadores. Ao se organizar e defender seus interesses eles perceberam que a política influencia a vida da sociedade.

As camadas populares começaram a se conscientizar de que a participação no exercício do poder político era condição fundamental para assegurar seus direitos. Essa participação podia ser como membro de um organismo investido de autoridade política, ou como eleitor dos integrantes de tal organismo.

Voto restrito
Inicialmente, inúmeras restrições limitavam a participação política de todos os cidadãos. O direito de eleger e ser eleito manteve-se restrito aos homens adultos. O voto censitário impunha padrões de renda e de escolaridade. Com isso, excluía grande parte da população do direito de ser eleito e de eleger representantes políticos.

Esses impedimentos perduraram por décadas. As mulheres adultas e os analfabetos conquistaram direitos políticos muito tardiamente, somente no século 20.

No Brasil, fim do voto censitário por renda
No caso do Brasil, a proclamação da República provocou mudanças na participação política. Foi abolido o voto censitário pecuniário que, para ser exercido, exigia uma certa renda do cidadão. Foi estabelecida a idade mínima de 21 anos para participar do processo eleitoral.

Os analfabetos e as mulheres permaneceram excluídos da participação política. As mulheres só conquistaram o direito de voto em 1934. Os analfabetos conquistaram o direito de voto em 1985, mas estão impossibilitados de se candidatar a cargos eletivos.

Direitos sociais
Os direitos sociais demarcam uma importante mudança na evolução da cidadania moderna. Sua função é garantir certas prerrogativas relacionadas com condições mínimas de bem-estar social e econômico que possibilitem aos cidadãos usufruir plenamente do exercício dos direitos civis e políticos.

O princípio norteador dos direitos sociais é o argumento de que as desigualdades de provimentos (condições sociais e econômicas) não podem se traduzir em desigualdades de prerrogativas (direitos civis e políticos). Desse modo, adquiriu-se a noção de que determinado grau de pobreza priva os cidadãos de participação cívica.

Finalidade dos direitos sociais
Os direitos sociais não têm por objetivo eliminar por completo as desigualdades sociais e econômicas e as diferenças de classe social. Sua finalidade é assegurar que elas não interfiram no pleno exercício da cidadania.

As instituições públicas representativas dos direitos sociais são os sistemas de seguridade e previdência social e educacional.

Constituição varguista
No Brasil, o marco da instituição dos direitos sociais ocorreu na época do regime do Estado Novo, com Getúlio Vargas (1930-1937).

A Constituição de 1934 instituiu uma minuciosa regulamentação das condições de trabalho ao estabelecer o salário mínimo, a jornada de trabalho de 8 horas, o repouso semanal, as férias remuneradas, a indenização por dispensa sem justa causa, a assistência médica ao trabalhador e à gestante.

Foi proibido pela nova Carta o trabalho de menores. Estabeleceu-se, ainda, a submissão do direito de propriedade ao interesse social ou coletivo.

A quarta geração de direitos
Desde o final do século 20 surgiram inúmeros movimentos sociais que atualmente lutam para ampliar a cidadania através da defesa de novos direitos.

A quarta geração de direitos de cidadania agrega demandas provenientes de novos tipos de movimento social, como o das minorias étnicas e culturais, dos homossexuais, dos movimentos ecológicos e feministas.

No contexto dos novos padrões de sociabilidade e da globalização, esses movimentos sociais possuem novas práticas participativas e de mobilização coletiva. Isso reflete o caráter dinâmico da cidadania.

*Renato Cancian é cientista social, mestre em sociologia-política e doutorando em ciências sociais. É autor do livro “Comissão Justiça e Paz de São Paulo: Gênese e Atuação Política – 1972-1985”.

Disponível aqui. Acesso em 23 fev. 2010.


O Nascimento de um Cidadão

Para renascer, e às vezes para nascer, é preciso morrer, e ele começou morrendo. Foi uma morte até certo ponto anunciada, precedida de uma lenta e ignominiosa agonia. Que teve início numa sexta-feira. O patrão chamou-o e disse, num tom quase casual, que ele estava despedido: contenção de custos, você sabe como é, a situação não está boa, tenho que dispensar gente.

Por mais que esperasse esse anúncio, que na verdade até tardara um pouco, muitos outros já haviam sido postos na rua – foi um choque. Afinal, fazia cinco anos que trabalhava na empresa. Um cargo modesto, de empacotador, mas ele nunca pretendera mais: afinal, mal sabia ler e escrever. O salário não era grande coisa, mas permitira-lhe, com muito esforço, sustentar a família, esposa e dois filhos pequenos. Mas já não tinha salário, não tinha emprego – não tinha nada.

Passou no departamento de pessoal, assinou os papéis que lhe apresentaram, recebeu seu derradeiro pagamento, e, de repente, estava na rua. Uma rua movimentada, cheia de gente apressada. Gente que vinha de lugares e que ia para outros lugares. Gente que sabia o que fazer.

Ele, não. Ele não sabia o que fazer. Habitualmente iria para casa, contente com a perspectiva do fim de semana, o passeio no parque com os filhos, a conversa com os amigos. Agora, a situação era outra. Como poderia chegar em casa e contar à mulher que estava desempregado? À mulher, que se sacrificava tanto, que fazia das tripas coração para manter a casa funcionando? Para criar coragem, entrou num bar, pediu um martelo de cachaça, depois outro e mais outro. A bebida não o reconfortava; ao contrário, sentia-se cada vez pior. Sem alternativa, tomou o ônibus para o humilde bairro em que morava.

A reação da mulher foi ainda pior do que ele esperava. Transtornada; torcia as mãos e gritava angustiada, o que é que vamos fazer, o que é que vamos fazer. Ele tentou encorajá-la, disse que de imediato procuraria emprego. De imediato significava, naturalmente, segunda-feira; mas antes disto havia o sábado e o domingo, muitas horas penosas que ele teria de suportar. E só havia um jeito de fazê-lo: bebendo. Passou o fim de semana embriagado. Embriagado e brigando coma mulher.

Quando, na segunda-feira, saiu de casa para procurar trabalho, sentia-se de antemão derrotado. Foi a outras empresas, procurou conhecidos, esteve no sindicato; como antecipara, as repostas eram negativas. Terça foi a mesma coisa, quarta também, e quinta, e sexta. O dinheiro esgotava-se rapidamente, tanto mais que o filho menor, de um ano e meio, estava doente e precisava ser medicado. E assim chegou o fim de semana. Na sexta à noite ele tomou uma decisão: não voltaria para casa.

Não tinha como fazê-lo. Não poderia ver os filhos chorando, a mulher a mirá-lo com ar acusador. Ficou no bar até que o dono o expulsou, e depois saiu a caminhar, cambaleante. Era muito tarde, mas ele não estava sozinho. Nas ruas havia muitos como ele, gente que não tinha onde morar, ou que não queria um lugar para morar. Havia um grupo deitado sob uma marquise, homens, mulheres e crianças. Perguntou se podia ficar com eles. Ninguém lhe respondeu e ele tomou o silêncio como concordância. Passou a noite ali, dormindo sobre jornais. Um sono inquieto, cheio de pesadelos. De qualquer modo, clareou o dia e quando isto aconteceu ele sentiu um inexplicável alívio: era como se tivesse ultrapassado uma barreira, como se tivesse se livrado de um peso. Como se tivesse morrido? Sim, como se tivesse morrido. Morrer não lhe parecia tão ruim, muitas vezes pensara em imitar o gesto do pai que, ele ainda criança, se atirara sob um trem. Muitas vezes pensava nesse homem, com quem nunca tivera muito contato e imaginava-o sempre sorrindo 9coisa que em realidade raramente acontecia) e feliz. Se ele próprio não se matara, fora por causa da família; agora, que a família era coisa do passado, nada mais o prendia à vida.

Mas também nada o empurrava para a morte. Porque, num certo sentido, era um morto-vivo. Não tinha passado e também não tinha futuro. O futuro era uma incógnita que não se preocupava em desvendar. Se aparecesse comida, comeria; se aparecesse bebida, beberia (e bebida nunca faltava; comprava-a com esmolas. Quando não tinha dinheiro sempre havia alguém para alcançar-lhe a garrafa). Quanto ao passado, começava a sumir na espessa névoa de um olvido que o surpreendia – com esqueço rápido as coisas, meu Deus – mas que não recusava; ao contrário, recebia-o como uma bênção. Como uma absolvição. A primeira coisa que esqueceu foi o rosto do filho maior, garoto chato, sempre a reclamar, sempre a pedir coisas. Depois, foi o filho mais novo, que também chorava muito, mas não pedia nada – ainda não falava. Por último, foi-se a face devastada da mulher, aquela face que um dia ele achara bela, que lhe aquecera o coração. Junto com os rosto, foram os nomes. Não lembrava mais como se chamavam.

E aí começou a esquecer coisas a respeito de si próprio. A empresa em que trabalhara. O endereço da casa onde morara. A sua idade – para que precisava saber a idade? Por fim, esqueceu o próprio nome.

Aquilo foi mais difícil. É verdade que, havia muito tempo, ninguém lhe chamava pelo nome. Vagando de um lado para outro, de bairro em bairro, de cidade em cidade, todos lhe eram desconhecidos e ninguém exigia apresentação. Mesmo assim foi com certa inquietação que pela primeira vez se perguntou: como é mesmo o meu nome? Tentou, por algum tempo se lembrar. Era um nome comum, sem nenhuma peculiaridade, algo como José da Silva (mas não era José da Silva); mas isto, ao invés de facilitar, só lhe dificultava a tarefa. Em algum momento tivera uma carteira de identidade que sempre carregara consigo; mas perdera esse documento. Não se preocupara – não lhe fazia falta. Agora esquecia o nome… Ficou aborrecido, mas não por muito tempo. É alguma doença, concluiu, e esta explicação o absolvia: um doente não é obrigado a lembrar nada.

De qualquer modo, aquilo mexeu com ele. Pela primeira vez em muito tempo – quanto tempo? Meses, anos? – decidiu fazer alguma coisa. Resolveu tomar um banho. O que não era habitual em sua vida, pelo contrário: já não sabia mais a quanto tempo não se lavava. A sujeira formava nele uma crosta – que de certo modo o protegia. Agora, porém, trataria de lavar-se, de aparecer como fora no passado.

Conhecia um lugar, um abrigo mantido por uma ordem religiosa. Foi recebido por um silencioso padre, que lhe deu uma toalha, um pedaço de sabão e o conduziu até o chuveiro. Ali ficou, muito tempo, olhando a água que corria para o ralo – escura no início, depois mais clara. Fez a barba, também. E um empregado lhe cortou o cabelo, que lhe chegara aos ombros. Enrolado na toalha, foi buscar as roupas. Surpresa:

– Joguei fora – disse o padre. – Fediam demais.

Antes que ele pudesse protestar, o padre entregou-lhe um pacote:

– Tome. É uma roupa decente.

Ele entrou no vestiário. O pacote continha cuecas, camisa, uma calça, meias, sapatos. Tudo usado, mas em bom estado. Limpo. Ele vestiu-se, olhou no espelho. E ficou encantado: não reconhecia o homem que via ali. Ao sair, o padre, de trás de um balcão, interpelou-o:

– Como é mesmo o seu nome?

Ele não teve coragem de confessar que esquecera como se chamava.

– José da Silva.

O padre lançou-lhe um olhar penetrante – provavelmente todos ali eram José da Silva – mas não disse nada. Limitou-se a fazer uma notação num grande caderno.

Ele saiu. E sentia-se outro. Sentia-se como que – embriagado? – sim, como que embriagado. Mas embriagado pelo céu, pela luz do sol, pelas árvores, pela multiradão que enchia as ruas. Tão arrebatado estava que, ao atravessar a avenida, não viu o ônibus. O choque, tremendo, jogou-o à distância. Ali ficou, imóvel, caído sobre o asfalto, as pessoas rodeando-o. Curiosamente, não tinha dor; ao contrário, sentia-se leve, quase que como flutuando. Deve ser o banho, pensou.

Alguém se inclinou sobre ele, um policial. Que lhe perguntou:

– Como é que está, cidadão? Dá para agüentar, cidadão?

Isso ele não sabia. Nem tinha importância. Agora sabia quem era. Era um cidadão. Não tinha nome, mas tinha um título: cidadão. Ser cidadão era, para ele, o começo de tudo. Ou o fim de tudo. Seus olhos se fecharam. Mas seu rosto se abriu num sorriso. O último sorriso do cidadão.


Moacyr Scliar